Saturday, July 09, 2005

meu funeral ideal

atendendo a pedidos (na verdade foi um só), e como não vou ganhar um centavo de royalties pelo livro mesmo, publico aqui o conto "meu funeral ideal", presente na ficções 14. divirtam-se. porém, lembrem-se de que isso não os isenta da responsabilidade de comprar o livro, até mesmo porque não dá para dar autógrafo em blog.

Meu Funeral Ideal

Estou deitado em um caixão de carvalho preto. Duas bolas de algodão, ligeiramente incômodas, estão enfiadas no meu nariz. O caixão é compacto, sinto a sola dos meus sapatos encostando-se ao fundo, e, pelo jeito, me vestiram com um terno apertado demais. No meu caso, fora de brincadeira, o defunto era maior.

Tirando isso, tudo corre conforme o planejado. Já se ouvem os primeiros acordes de “My Death”, interpretada por David Bowie, ao fundo. FSX, que sempre achou que ia bater as botas antes de mim, dá uma risadinha que, tenho certeza, ninguém entende. Logo antes de morrer – vou poupar-lhes dos detalhes médicos –, confabulei com esse meu camarada e tracei o plano do meu funeral ideal. Vejo que FSX, como de costume, não me decepcionou.

Está tudo aqui. O cara todo de preto, com feições nórdicas, próximo ao meu caixão. Toda vez que alguém se aproxima para perguntar se ele conhecia o morto ele se limita a tirar uma torre de xadrez da boca e dar um sorrisinho. O DJ com sua série de músicas para colocar, começando com a acima citada e terminando com “Cemitério”, do Belchior. O sujeito vendendo cerveja em lata a R$1,00 e caipirinhas a R$3,00. O pessoal jogando porrinha e uma mesa de sinuca, para quem acha velório, com razão, uma coisa tediosa.

Para dizer a verdade, a primeira idéia era fazer um bacanal. Todo mundo trepando, bebendo e se divertindo enquanto eu observava do meu caixão que, naturalmente, seria de vidro e estaria na vertical (mal sabia eu que a perspectiva post-mortem fica muito mais – digamos assim – abrangente, possibilitando, inclusive, liberdades narrativas anteriormente impensáveis). Porém, a idéia de ver alguns dos meus parentes em conjunção carnal não me pareceu muito agradável. Chegou-se a cogitar um segundo enterro, só para os mais chegados, onde, aí sim, a putaria iria rolar solta.

Só que FSX não conseguiu encontrar cemitério que aceitasse tirar meu caixão da cova para um bis. As pessoas levam a morte tão a sério que não houve suborno que chegasse para convencer os coveiros de que tudo não passava de uma brincadeira, último desejo do morto, coisa e tal. Essa gente ainda não entendeu que a morte não é nada além da piada derradeira, e que se a gente mesmo não rir, quem vai rir no nosso lugar?

Mas, tudo bem. Do jeito que está, está bom. Já fecharam a tampa e começaram a movimentar-me para a cova. Pedi para o FSX conseguir uma cova decente, daquelas de filme, o caixão descendo com cordinha e tudo. Detesto aqueles gavetões. Desde criança que imagino meu caixão mergulhando nos célebres sete palmos. Não ia deixar que me enfiassem numa gaveta, feito presunto no IML. Além do mais, o grand finale só seria possível assim.

Pronto, começaram a descer o caixão. Súbito, soa um baque e ele pára no primeiro palmo. Perfeito. Antes de qualquer um se dar conta do que está acontecendo, ela já está abrindo caminho entre as pessoas, o vestido vermelho-vivo e a maquiagem toda borrada pelas lágrimas. Dá um salto para dentro da cova e aterrissa sobre o caixão, se contorcendo toda, berrando e se descabelando num pranto louco. Tem que ser retirada à força, por dois coveiros, para que a cerimônia termine. Na saída, se abraça a duas crianças e fala bem alto, para todo mundo ouvir: “Não importa o que essa gente diga, meus filhos, seu pai sempre amou vocês”.

Todos olham para a cova aberta e em seguida se entreolham assustados, tentando entender. Terminado o escândalo, o caixão começa a descer outra vez. Outro baque e ele pára de novo. Dessa vez a moçoila é ruiva e traja um vestido roxo, além de carregar consigo três crianças que ficam dependuradas na beirada da cova, choramingando. Descabela-se e esperneia com mais esmero ainda e a gargalhada característica de FSX ecoa no cemitério, se misturando à minha, inaudível para qualquer um além de mim mesmo, vingativa e perene.

4 Comments:

Blogger André said...

muito bom.

9:25 AM  
Anonymous Anonymous said...

Fita Amarela - Noel Rosa

Quando eu morrer
Não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela

Se existe alma
Se há outra encarnação
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão

(Oi, sapateia, oi, sapateia)

Não quero flores,
Nem coroa com espinho
Só quero choro de flauta,
Com violão e cavaquinho

Estou contente
Consolado por saber
Que as morenas tão formosas
A terra um dia vai comer

Não tenho herdeiros
Não possuo um só vintém
Eu vivi devendo a todos
Mas não paguei nada a ninguém

Meus inimigos
Que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim



Quero que o sol
Não visite o meu caixão
Para a minha pobre alma
Não morrer de insolação

10:47 AM  
Anonymous Anonymous said...

a vida como ela é...tantantantantan
claro claro um tanto mais funebre e sarcástica...até porque não tem as cenas de sexo do Nelson

9:24 PM  
Blogger Ana Carolina Braz said...

gostei muito!

6:39 PM  

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